O Silêncio que Antecede a Tempestade

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girlandbirds

por: Raul Suarez
 
Fazia calor. Ele sabia pela intensidade da sombra.  Francisco já não era capaz de sentir nada, inclusive o calor. Ele perdera, ao longo da vida, a capacidade de captar emoções e transformá-las em reações químicas. Sucessivos golpes lhe arrancaram, como lascas de madeira, sua sensibilidade.  Dizia a todos, munido de dura consciência: “Não vivemos. Sobrevivemos”. Enquanto caminhava sob o forte sol, carregando um enorme saco plástico com centenas de latinhas, este homem sobrevivia. Abaixava-se, pegava mais uma, alguém atento jogava outra dentro do saco, a maioria jogava no chão sabendo que o recolhimento viria em seguida, por aquela figura. Nada o incomodava. O ritual era automático, vez ou outra resmungava se algo lhe irritasse, mas isso era raro. Pensava sozinho e de vez em quando murmurava bem baixo: “Se você está com a razão, Deus é o seu advogado. Se você não está com a razão, o diabo é seu advogado e Deus é o juiz.” Pouquíssimos foram aqueles que conseguiram ouvir, ao longo da história, esta espécie de mantra de seu Chico.
A única coisa que poderia interromper seu caminhar eram os passarinhos. Admirava-os, invejava-os e, acima de tudo, lhes saudava. A liberdade, a beleza, o sublime. Ele sabia o quão eram majestosos, todos aqueles seres dançando. Leves. Como são leves. Ele também já fora leve. Não raro, era visto com a mão sobre as sobrancelhas, tampando o sol, para poder observá-los. Curioso notar o número de curiosos ao seu redor, procurando o que aquele homem tanto olhava, o que haveria de tão importante? Alguém ameaçava se jogar de um prédio? E a cara de clara decepção, quando descobria se tratar apenas de um bem-te-vi. Perda de tempo, vida que segue, pensavam desiludidos.
 
Enquanto não podia voltar a abrir suas asas, ele continuava se esgueirando no caos.
Era carnaval no Rio de Janeiro, em frente ao colégio São Paulo. O Arpoador era o cenário. O cenário era o Arpoador. Ele não era mais um na multidão, era menos um. Assombroso reparar no quão despercebido um ser humano pode se tornar. Não é preciso disfarce, tecnologia, nada. A arte de ser invisível já existe. Francisco era invisível. Por algumas vezes pode-se ver seu reflexo, cintilante como o alumínio de suas latinhas. E quem viu, não esqueceu. Foi neste dia, nestas circunstâncias, que ele apareceu para todos. Em forma de santo, em forma de louco, em forma de bobo. Mas apareceu. De onde saíra aquele homem? Quem era? De onde veio? Como foi parar ali? Era feio! Era magro! Era um homem? Chico, no meio da multidão, pisando forte sobre mais uma lata, vira uma menina olhando para o céu. Mãos na testa, como batendo continência à alguma autoridade. Ela não se importava com o barulho, não reparava nos irmãos ao lado comendo picolé, ao contrário, o seu derretera. Foi tomado da mesma curiosidade dos transeuntes curiosos que lhe imitavam, e olhou pra cima, batendo continência ao sol, para que a sombra lhe permitisse encontrar o que aquela menina estava olhando.
 Avistou o bem-te-vi sem grandes dificuldades, estava acostumado àquilo, porém agora estava alternando entre a observadora e o observado. Ele começou a reparar no suor saindo de seus próprios poros, na beleza das penas do bem-te-vi, na ternura do olhar respeitoso da menina à criatura. Ele sentiu. Pela primeira vez em muitos anos, Chico sentiu. E sentiu felicidade.Não sabia se estava feliz por sentir ou sentindo por estar feliz.
Quando tornou a olhar para o pássaro, ele tinha acabado de levantar voo. Ia se despedir mentalmente de sua amiga observadora da leveza, quando a viu, já em movimento, como se seguisse o abrir de asas do bem-te-vi, correndo no meio de todos. Pequenina, frágil, rápida, tentando ir atrás daquela criatura magnífica, passando de forma invisível – pela estatura e não por ser como ele – por todos, em direção à rua aberta ao trânsito. Tomado por um impulso, esquecendo as dores horríveis nas costas, aquele homem – que viu a Beleza e agora previa a tragédia – saiu em disparada.
O barulho das latinhas não chamou a devida atenção, mas provocou uma certa preocupação ao redor, e algumas pessoas começaram a vislumbrar o semblante do que parecia ser um homem, frágil, correndo. Outro barulho, logo após, chamou a atenção: gritos de um homem e uma mulher desesperados, chamando por Silvia. E no terceiro ato de sucessivos ruídos estranhos, o barulho característico de uma freada brusca. Seguido instantaneamente de um som abafado e alto. O movimento dos carros parou, o som do silêncio fez-se ouvir, a multidão em torno daquela figura encolhida no asfalto se fez, como se ensaiado fosse. Poucos viram o olhar de Francisco para o céu azul. Ele voltara a sentir o calor. Como era bom sentir, como era bom ver as gaivotas em forma de V, naquele céu. Maior do que tudo isso, o melhor momento de sua vida, foi ver a garotinha, a que observava os pássaros, tentando lhe dar a mão, mas sendo puxada por seus pais aliviados.
Testemunhas afirmaram, horas depois, que um homem, surgido do nada, havia se jogado em frente ao carro, para empurrar com força, uma menina, que atingiu a calçada assustada. Ela estava olhando para o céu, como se perseguisse com os olhos alguma coisa, disse um vizinho, e então tudo aconteceu.
 
Chico reaprendera a sentir, observando a observadora. E a observadora, ele talvez não saiba nunca, de sua janela, em Ipanema, desde sempre ficava fascinada por aquele homem com a mão no rosto, olhando pra cima, pra uma árvore, para um fio da rede elétrica, para marquises ou prédios. E ela demorou, muito, mas começou a encontrar uma lógica naquilo tudo. Os passarinhos. E se encantou, como se encantou, por eles! E aprendeu, com aquele homem invisível, a ver.
 
No dia seguinte, o cenário era outro. Frio, gelado e branco. Um hospital. Francisco nunca havia estado em um. Um homem sorria para ele, olhava em seus olhos, parecia enxergá-lo. Pensou estar no além mundo. Achou tudo aquilo estranhíssimo. Demorou algum tempo até perceber que este homem estava falando com ele. Perguntando se ele estava bem, ouviu as palavras ‘milagre’, ‘deus’, ‘titânio’, ‘sangue’, ‘herói’, ‘imprensa’, ‘celebridade’, ‘médicos’, etc.
Naquele momento não conseguiu conectá-las. Inúmeros fios estavam enfiados em suas veias, mas não sentia dor. Não hesitou em perguntar ao homem:
 
 – O senhor poderia abrir a cortina? Eu quero observá-los.
 
O médico, pensando se tratar de um quadro clássico de esquizofrenia, nem se deu ao trabalho de perguntar quem, quem ele queria observar. Sorte a dele, não precisar explicar.
E o doutor se dirigiu à sala da coletiva de imprensa, para explicar o procedimento que realizara no paciente, o herói, a celebridade. E no quarto, naquele ângulo, na beira da janela, uma simples pomba parou. E observou aquele homem deitado na cama. Leve e livre.