Raul Seixas salvou minha vida – 25 anos desde que o mundo ficou menos brilhante.

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Eu tinha 13 anos, era uma “formiga que trafegava sem porque“, pela Zona Sul carioca, como ele cantava em “S.O.S.”. Lembro até hoje, quando passava pela cozinha e ouvi: “eu sou o início, o fim e o meio“, de “Gita“, era a época da novela “A Indomada“. Bastou ser tocado, rapidamente, pelo alquimista Raul. No dia seguinte, meu pai foi a um sebo de discos e comprou todos os cd’s de Raulzito, e ali, com tais preciosidades em mãos, ao longo de uma semana ouvindo-os sem parar, minha vida foi salva. Foi um furacão em minha mente. Aquele cara falava de amor, dor, Dom Quixote, Silvio Santos, disco voador, Al Capone, Deus, Diabo, Freud, filosofia e tudo que existe neste mundo e fora dele. Era possível ouvir a verdade de cada sílaba proferida nos alto falantes. Não a “verdade absoluta”, pois, como ele sabia e cantava, ela não existe, mas era impossível ficar indiferente à suas músicas, que são lamentos, manifestos, dúvidas, certezas de um homem genial, à frente de seu tempo, anos luz, na minha opinião. 
Para mim, um moleque que só conhecia o rock britânico, com uma guitarra na mão, Raul foi não só a faísca, foi a bomba atômica que me fez acender o sonho definitivo de enveredar definitivamente pela e para a música, pelo rock and roll. A partir dali, “minha espada era guitarra nas mãos”. E assim é até hoje. 
A obra de Raul, muito mais vasta, inteligente, abrangente do que a de outros tão falados compositores da “MPB” — e aqui me lembro dele cantando: “Acredite que eu não tenho nada a ver, com a linha evolutiva da música popular brasileira, a única linha que eu conheço é a linha de empinar uma bandeira” — como Chico Buarque e Caetano, por exemplo, ainda será desvendada em toda sua profundidade, porque ainda não foi. Raul geralmente é analisado e propagandeado apenas como “maluco beleza”, “o cara da metamorfose ambulante” e outros adjetivos batidos e rasos. Não! Ele era muito mais profundo que isso. Raul era angelical, basta ouvir “Ave Maria da Rua” e “Diamante de Mendigo“; Raul era romântico ao extremo, coração de manteiga como em: “Coisas do Coração”, “Tu és o M.D.C da minha vida”, “À beira do Pantanal”, “Ângela” e “Mata Virgem”; era sábio: “Ouro de Tolo”. “Loteria da Babilônia”, “Novo Aeon”, “O Homem”; era dono de uma ironia rara e precisa, como em: “Sapato 36″, “Para Noia”. “Check Up”, “Al Capone”, “Rock das Aranhas”. “Babilina” e “Fazendo o que o Diabo Gosta”;  possuía a filosofia pura, clássica, que conseguiu, feito raro na arte, levar à massa, em: “Metamorfose Ambulante”, “Gita”, “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”, “O Conto do Sábio Chinês” e “Canto para Minha Morte”. E os adjetivos não terminariam nunca, bem como as músicas, para exemplificá-lo. Raul não era, como acabo de escrever, Raul é. No presente. Ele é maior do que qualquer possibilidade de adjetivação, de nossa mania idiota de tentar rotular e classificar tudo que vemos e ouvimos. Ele é grande demais para ser totalmente interpretado e entendido nestes 25 anos desde que partiu, junto ao moço do disco voador, rumo às estrelas por aí. 

Graças a ele, que queria ter nascido nos Estados Unidos e teve de se contentar em ser vizinho do consulado americano, ainda muito novo, e apresentado ao ainda desconhecido rock,  o Brasil teve acesso a um genuíno roqueiro. De Salvador, na Bahia, Raul veio para conquistar o país e ainda o faz, porque atinge a alma de cada um que não esteja ocupado demais para pensar, como ele dizia. Seria espantoso, de fato, se Raul tivesse o inglês como língua materna, para estar, provavelmente, ao lado de Bob Dylan no hall dos maiores compositores mundialmente conhecidos da História. 
Fosse o nosso país um lugar mais respeitador para com sua memória, seus ídolos, Raul teria seu próprio museu — não para ser idolatrado, porque odiaria, mas para a perpetuação de tal gigantismo cultural –, Salvador estaria para nós como Memphis está para Elvis. Mas, como ele mesmo já dizia: “a solução é alugar o Brasil”. 

No caminho musical, como guitarrista do Aérobus, também tive a inenarrável honra de conhecer e trocar palhetas com Rick Ferreira, guitarrista de todos discos de Raul – com exceção do primeiro, salvo engano – e no fim do ano passado, tive uma das maiores alegrias de minha vida conhecendo Kika, ex-mulher de Raul, que respondeu à uma carta minha, apenas mais um fã enchendo o saco, e tendo a honra de conversar sobre o homem Raul, ver suas roupas de shows, ler pedaços de cartas manuscritas pelo próprio, e ali, eu sentia, de uma forma inexplicável: estava completado um ciclo, começado aos 13 anos, através dele, Raul; e com 26 anos, em contato direto com seu território físico, com pessoas próximas e sentindo sua presença. E me pego pensando…estaria completado um ciclo ou aberto um novo?
Realmente, graças ao Raul Seixas, e toda sua obra gigantesca e genial, minha vida foi salva. Através de sua poesia. Ele devastou qualquer possibilidade de se levar uma vida sem o exercício e a dor do pensar.
Raul só se curva ao clichê na frase: “Raul não morreu, está vivo.” Sim, de fato, Raul esta muito vivo e sua obra ainda inexplorada, para sorte dos que ainda não o fizeram.

Viva, Raul!

eu sou astrólogo, eu sou astrólogo, vocês precisam acreditar em mim / Eu sou astrólogo e conheço a História do princípio ao fim” – Seixas, Raul.