O radicalismo da prudência

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Aviso ao leitor: texto enorme, me perdoem, e que contém trechos de “isentão”, beirando o histórico discurso da ex-presidente Dilma: “Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder”.

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Nos últimos tempos, ficamos acostumados a escolher entre o 8 ou 80, o preto e o branco, especialmente nos tempos de PT no poder. Era nítido para qual lado a torcida, minimamente consciente, deveria pender. Como era fácil. Simples como decidir para quem torcer num Brasil vs. Argentina. Os tempos de hoje são mais complexos. Me parece que, fora das redes, e para quem não vive disso, mesmo antes do Covid-19, a maioria da população já não aguentava mais o baixo nível da política diária, e a busca incessante pelo lacre. Para variar, esta maioria aparentava querer paz para trabalhar e aproveitar os momentos de lazer com suas famílias. Atualmente, vejo esta horda silenciosa com receio do novo inimigo desconhecido, o vírus, e, claro, temerosa pelo desastre econômico que bate à nossa porta. Pessoas mais interessadas em saber como nossos governantes lidarão com esta ameaça dupla na prática, do que com lacres nas redes para convertidos.

Corona: ame-o ou deixe-o?

Como tudo na vida, elas, as redes sociais, têm seu lado negativo: com os famosos caracteres limitados do Twitter, em especial, as discussões parecem ficar cada vez mais binárias. Em tempos normais, já seria perigoso. No caso excepcional atual, do novo coronavírus, e suas consequências econômicas, sociais e de, literalmente, vida ou morte, por vírus ou fome, creio que a questão é ainda mais grave, e não deveria ser tratada na base do “ame ou odeie”. O buraco, me parece, é muito mais embaixo. São muitos os fronts: o da saúde, onde muitos, da noite para o dia, viraram especialistas; o biológico; o químico; o logístico; o econômico e, claro, o mais sujo de todos, o front político, muito parecido com o front do ego. Lutar em diversos fronts com uma só estratégia, a meu ver, é abraçar a derrota. Por isso, o meu pé atrás com quem vende a fórmula de soluções fáceis para questões complexas.

O front da química

Serei chamado de isentão, mas prefiro, no caso atual, adotar o radicalismo da prudência. No front químico, não posso, jamais, escrever aqui que a cloroquina, por ex., é a solução de todos os problemas. Torço para que o seja, em combinação com outras substâncias, mas a minha torcida não pode passar de mero desejo. Assim como torço abertamente para que o governo atual dê certo. Como torço para que uma série de particularidades do Brasil mitigue o poder de destruição do novo coronavírus, como nosso costume de aplicação em massa da vacina BCG, o clima mais quente, dentre outros fatores que poderão ser descobertos no futuro. Sempre disse que prefiro errar uma análise, e o país acertar o rumo, do que o oposto. E qualquer botafoguense está acostumado a torcer por causas difíceis. Sobre a cloroquina, manifestei também o meu espanto com o extremo-oposto, em texto recente: a demonização da substância. E o desejo de grande parte da opinião publicada de mantê-la nas sombras, beirando a torcida organizada para que ela não funcione. As discussões em torno deste remédio mostram o nível de 8 ou 80 em que nos metemos (aliás, Fernando Gabeira fez um belo texto sobre a substância n´O Globo). Para mim, é evidente que “cada caso é um caso”. E ponto final. Como não deveriam ser tratadas de forma igual uma cidade com 50.000 casos de COVID-19, e outra, no interior, onde ninguém está doente. Hoje, qualquer tipo de ponderação é rechaçada, vista como fraqueza, cumplicidade com o inimigo etc. A prudência não dá likes.

Fronts da Saúde e da Economia

Desde o início do novo coronavírus, decidi fazer uma promessa, a de não me render ao pensamento político dicotômico, pois há vidas humanas em risco, no front da saúde e no front do colapso econômico. Não sou especialista em economia e muito menos em medicina. Infelizmente, entendo de política, e já imaginava que, no milésimo seguinte após ser dita à exaustão, por políticos, a famosa e sensata frase, “não vamos politizar o vírus”, tudo seria politizado. Como são várias as trincheiras, vejo muitos cedendo à esta tentação de adotar uma postura única para problemas diversos.

Mandetta no Fantástico, no último domingo (12/04/2020)

Front da vaidade

No front do ego, o ministro da Saúde, outrora aparentemente coerente e prudente, cedeu à vaidade. Já não importa se tinha ou não razão. Foi ao Fantástico pedir música: fez 3 gols em cima de quem o colocou no poder. A audiência explodiu. Ele conseguiu o que queria. É claro que força sua demissão. Provavelmente se cacifa para o governo do Mato Grosso do Sul, em 2022. Suas redes sociais, leio, triplicaram de seguidores nos últimos tempos. Bom ou mau sinal? Você decide. O homem cede às suas paixões, e ao mesmo tempo em que fala de ‘vidas humanas’, parece priorizar a sua vida. Política. Neste caso, acaba-se minha simpatia pelo ministro. Respeitei, enquanto durou, o médico preocupado com seus pacientes. O governo, que havia recuado de sua demissão, terá de trocar os 4 pneus, com o caminhão em movimento — por ego. Cheguei a pensar, ingênuo, que Mandetta só queria “fazer o bem, sem olhar a quem”. Mas como as coisas não são simples, infelizmente, vou discordar do ministro e também de seu chefe, nosso presidente. Bolsonaro, para ressaltar seu ponto de divergência com Mandetta, “precisa” ir à farmácia e à padaria. E parece não querer racionalizar o debate — inclusive para defender seu ponto de vista, ao contrário: tem de incendiá-lo. E se você discorda deste método, ou da forma, é um traidor do movimento.

Front das liberdades individuais

No front da saúde, é possível respeitar o desconhecido e invisível inimigo do vírus, sem desmerecer, zombar, ironizar ou minimizar as mortes causadas por ele, independentemente do número, e, ao mesmo tempo, manter a guarda levantada para o autoritarismo que, feito um tubarão, sente o cheiro de sangue. E chegamos ao front da liberdade individual: vejo governadores algemando cidadãos inocentes, em terra onde Lula está livre e tuitando, monitorando celulares, tudo, claro, com a ‘melhor das intenções’, mas fica a pergunta: e quando a crise passar? Abrirão mão destas ferramentas? Todas medidas de controle do Estado, ao longo da História, começaram em tempos de crise, sob as vestes do “justificável”. Mais grave ainda: quem dirá quando essa crise passou? Quem será o juiz da nossa liberdade futura? A OMS, um governador, um prefeito, uma musa-fitness do Instagram, o presidente da República, um ministro ou votaremos por nós mesmos num paredão do BBB? Pois também já há verdadeiros mercadores da morte, cavaleiros digitais do apocalipse, que descobriram no novo coronavírus um “nicho de mercado” macabro, e que desejam uma quarentena de 10 anos, se possível.

Front político

Como nosso atual ex-ministro Mandetta, os governadores juram de pés-juntos que não estão fazendo política. Existe maior politicagem do que negar o inegável? Politizar o vírus custará milhões de pequenos e médios negócios, criará outros milhões de desempregados, e, muito provavelmente, impedirá um combate mais racional e bem preparado ao COVID-19, evitando mortes desnecessárias. Inclusive num outro front, o invisível: o das consequências para os que têm problemas psicológicos. Sendo praticamente impossível de aferir, a quarentena não planejada, somada à incerteza econômica do futuro, certamente provocará suicídios e o surgimento, ou piora, dos casos graves de depressão. Mas quanto mais racionalidade pedimos no debate, mais o ego reina triunfante acima de nós.

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É o caso de dois dos maiores estados do Brasil, SP e RJ, que parecem ter decidido, e espero estar errado, que o norte do combate ao novo coronavírus não serão números concretos de infectados, percentuais de leitos ocupados, mortos ou sobreviventes, mas suas respectivas agendas pessoais. Em Brasília, Rodrigo Maia, justo ele, veste a fantasia de cidadão preocupado com os rumos da nação. Quando leio manchete neste sentido, me pergunto se já não estou febril e infectado. É evidente que o presidente da Câmara se aproveita do caos para minar o governo de quem é desafeto. Como toda oposição. Mas ele tem “ajuda”, pois, como não canso de repetir, o próprio governo federal cria ruídos na comunicação, quase diariamente, parecendo ter se viciado em voos turbulentos.

Front da esperança (ou ingenuidade)

Falo como se fosse fácil, ciente de que não o é, mas se o presidente conseguisse passar por esta crise respeitando o novo coronavírus (que é diferente de o temer), prestando solidariedade às suas vítimas, muitas em países com chefes de Estado aliados do Brasil, evitando criar situações polêmicas a troco de likes nas redes, freando o autoritarismo de determinados governantes, e se colocando como alguém equilibrado em meio ao caos, inclusive no combate efetivo e direto ao próprio Covid-19, certamente ele entraria para a História.

Conclusão

Tudo isso, caro leitor, para dizer que, às vezes, as respostas não são tão simples quanto gostaríamos, e que será fundamental estarmos atentos aos próximos acontecimentos, em todos os fronts.