Keith Richards riu da cara do tempo no Maracanã – Uma resenha do show dos Stones

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Carlos despertou-se calmo. Sabia que viveria um dia especial, mas, acostumado ao artificialismo das experiências ditas especiais que supostamente temos todos os dias, quando somos convencidos a todo instante de que podemos comprá-las sempre que delas necessitarmos, estava um pouco cético. Imprimiu seu “e-ticket” descrente. Haveria comprado uma dose de falso prazer, com seu ingresso de “pista premium”?

Entretanto, algo estava diferente naquele dia. Carlos não queria colocar muita expectativa no que estaria por vir, tentava manter a rotina normal de um sábado sem rotina, mas percebia com estranheza algumas atitudes suas que não reconhecia. Não leu os jornais, parecia não querer saber de mais nada. Tudo o que precisava para sobreviver a esse sábado já era de seu conhecimento. Já sabia tudo. Até demais. Abriu a janela e respirou profundamente. Carlos nunca foi daqueles mais ligados em natureza, em respirar profundamente o ar da manhã. Talvez aquela não fosse, então, qualquer manhã. Talvez aquele não fosse, então, qualquer ar. A manhã, o ar, tudo estava diferente. Sim, os Stones estavam “in town”.

Carlos tentou ir à praia. Esforçava-se em fazer deste dia um dia normal. Não conseguiu. Depois de almoçar tentava não ir correndo para o Maracanã, local do show. Não tinha mais idade para ficar esperando os portões abrirem aturando aquelas rodinhas de violão dos “verdadeiros fãs” que passaram a noite acampados lá.

Aguardou mais um pouco. Fez um par de coisas triviais. Marcou de se encontrar com amigos “depois do show”. Sim, “depois do show”. Como se fosse possível fazer qualquer tipo de previsão para “depois d’O Show”. Mas Carlos seguia tentando enganar-se.

Eram quatro horas da tarde. Os portões abriam-se. Hora de deixar a galera do fã-clube entrar e dirigir-se ao estádio. Ainda na tentativa de fazer deste show algo o mais próximo possível de um evento mundano, pensou em como tiraria algumas fotos. Percebeu que seu celular não teria bateria suficiente. Ligou para sua irmã, passou na sua casa, pegou uma câmera emprestada. Assim poderia fazer até vídeos! Até parece. Resolveu deixar a motocicleta na casa da irmã e caminhou para a estação de metrô. Não havia motivo para isso, não iria beber. Mas algo lhe dizia para ficar livre depois do show.

O caminho foi de lembranças. Dos encontros e desencontros de quem, pelos motivos mais variados, desde 1998 tentava em vão assistir novamente àqueles senhores no palco. Os mesmos senhores que fizeram aquele garoto de 13 anos, em seu primeiro show de rock na vida, na irônica Praça da Apoteose do samba, entender porque passara a primeira infância ouvindo os mesmos vinis todos os domingos. Lembrou-se do dia em que, ainda criança, perguntou em casa o que significava “bitch”. Naquele dia quase ouviu a história da sementinha na barriga da cegonha, algo assim. Abriu um leve sorriso. E olhou para a foto do seu pai que, como consequência de mais uma atitude vespertina levemente incompreensível, havia colocado em sua mochila. Teria sido aquela visita à sua irmã uma desculpa para lembrar-se desses bons momentos?

Conhecia muito bem aquelas estações. Já fora muitas vezes ao Maracanã. Conhecia a visão do estádio na saída do metrô. Vê-se o estádio do alto. Era sempre uma visão bonita. Mas não estava especialmente bonita. Carlos encheu-se de esperança: seria um dia normal.

Caminhando para a entrada encontrou Bernard Fowler passeando ao redor do estádio. O backing vocal de 1998 agora já é um veterano dos palcos stoneanos. Bobby Keys não estará lá (“Go Bobby, Go”). Lisa Fischer tampouco. Foi bom ver Bernard Fowler.

Carlos caminhou um pouco mais, entrou no estádio, comprou dois copinhos d’água (não mais que isso, para não ter que ir ao banheiro), entrou no campo, o campo do Maracanã (!), mas nem ligou. Atravessou-o com um alvo certeiro. Os amplificadores de Keith Richards. Encontrou os de Darryl Jones. Um pouco mais à esquerda estavam os de Keef. Cobertos! Mas Carlos não tinha dúvidas. Eram eles. Posicionou-se em frente a este local especial do universo, os 30 metros em frente aos amplificadores de Keith Richards. Sentou-se no chão. Comeu um sanduíche e aguardou.

Aguardara muito já. Tantos anos! Não se importava em aguardar um pouco mais.

Fazia sol. Caiu uma tempestade. Comprou uma capa de chuva. Irritou-se com a capa de chuva: ela atrapalhava o ato de sentir a chuva! Quem diria? Colocou-a na mochila e seguiu aguardando. O Ultraje a Rigor chegou para fazer o show de abertura. Em 1998 a tarefa coubera a Bob Dylan.

Acabado o show de abertura, entrou no palco a equipe de roadies e técnicos dos Rolling Stones. Carlos tentava se lembrar dos seus tempos de fã adolescente. Pierre De Beauport estaria lá? O homem que decidia qual guitarra Keith deveria tocar em cada música. Não reconheceu ninguém. Mas viu quando um homem tirou a capa de proteção da bateria. Agora a brincadeira ficava séria. Estava lá ela, a Grestch amarela round badge de Charlie Watts. Seria de 1966, 67? Não lembrava mais. Houve um tempo em que soube tudo isso. O China que somente Charlie Watts pode conduzir, estava lá. Conduzir uma música em um prato China é algo inconcebível para qualquer músico de bom gosto. Charlie o faz com maestria. Charlie is my darling, indeed.

Carlos observava a afinação da bateria de Charlie Watts. Gostaria de ver aquele pedal Ludwig. Mas não era importante. Estavam afinando a bateria de Charlie Watts. Do homem que pulava na capa de Get Yer Ya-Ya’s Out. “Charlie’s good tonight, i´n´t?”, perguntou Mick Jagger em algum momento deste disco ao vivo. Charlie estava inspirado naquele Madison Square Garden, de fato. Anos mais tarde sua bateria estava finalmente afinada em outro palco, no Maracanã. A brincadeira ia ficando séria demais.

O tempo passava. Algumas pessoas reclamavam da espera. Houve algum problema em algum telão. Nada importava. Carlos até queria que demorasse mais. Era tudo tão gostoso, para quê apressar as coisas? Eles vão tocar, e quando tocarem, tocarão sem pressa. Porque sempre foi assim.

As luzes se apagaram. Já não chovia.

Algumas pessoas viram a cabeleira branca e a bandana. Essa bandana nunca favoreceu aquelas orelhas. Será ele, se perguntavam? Carlos sabia: Keith Richards estava pronto. Carlos conhecia aquelas orelhas.

Ficou olhando para Keith. Parecia que ia demorar ainda para entrar. Estava no seu cantinho preferido, atrás da bateria. Tão calmo que Carlos assustou-se quando ele caminhou decidido para a frente do palco. Carlos nem havia percebido que ele já estava segurando sua guitarra. Mas Keef é assim, segura sua guitarra com tanta intimidade que nem se percebe.

Keith Richards tinha um spot de luz em sua direção. Não estava mais escondido, visto apenas por quem estava ali na frente. Agora todo o estádio o encarava. Antes da primeira nota, o show havia começado.

Então aquele avô de alguém tocou, com a naturalidade com que qualquer outro avô troca o canal da TV, o ínicio do riff de Start me Up. E ria. Fazia cara de sério para o telão, mas ria. Quem estava ali tinha certeza. Keith Richards estava morrendo de rir. Estava brincando de tocar guitarra no Maracanã lotado. Ele ria. E Carlos e as pessoas em volta se preocupavam. O timing para a execução do restante do riff ia se aproximando. As mãos de Keith ainda muito longe de onde deveriam estar. Estaria o pirata brincando demais?

Sim, estava. Estava brincando com as nossas caras. Estava brincando de ser o maior do mundo quando o assunto é tocar um riff de guitarra.

Keith Richards não estava rindo somente da cara de todos.
Keith Richards ria da cara do tempo.

Até que, no único momento possível, continuou o riff.  Rindo.

Somente Keith Richards e Einstein brincaram com o tempo dessa maneira, com tanta intimidade.

Carlos chorou não o choro do fã adolescente. Chorou o choro da felicidade. Do poder da música, não importa qual seja. Há muito Carlos não se sentia tão pleno. Feliz! Sem medo de usar essa palavra. Carlos estava feliz. Percebeu que cantava “you make a grown man cry” chorando e sorrindo. Achou engraçado. Lembrou-se de quando viu, daquele mesmo ângulo, aquele senhor abrindo um show com o riff de Satisfaction. Mas desta vez foi diferente. Keith Richards não o enganava mais com aquela pose de pirata. Ele sabia que ali, na sua frente, com roupa de mau, estava um sujeito que apenas se divertia. E Carlos também se divertiu.

O resto do show simplesmente aconteceu. It´s Only Rock and Roll (But I Like It), a música com título mais auto-explicativo da história, foi a seguinte. Mick Jagger nos perguntava se precisava enfiar uma faca no coração para nos agradar. Mas fazia muito mais.

Carlos não precisava de jóias na sua coroa e Out of Control veio só para nos lembrar de que em 1997 saiu um dos melhores discos da história do Rock. Carlos ouviu Like a Rolling Stone, porque a banda que melhor escolhe seus covers estava no palco. Doom and Gloom, porque, afinal de contas, os caras estão pra lá de vivos! Baby, won´t you dance with me?

Assim seguia o show. Pelas guitarras que Ronnie Wood e Keith Richards empunhavam, Carlos sabia qual seria a próxima canção. Quando percebeu que Angie estava a caminho até lamentou não sofrer mais como sofrera meses antes. Seria uma bela canção para curtir uma fossa. Mas lembrou-se com carinho dos sonhos que viraram fumaça.

Carlos pintou tudo de preto. Conheceu uma divorciada em NYC. Entregou seu coração e sua alma para uma mulher de olhos piscantes. Lembrou de outra, a de olhos distantes. Sabia que esta não apareceria naquela noite. Mas tanto fazia. Trabalhou nos bares da twilight zone. Deu mais um adeus, a mais um amigo. E viu quatro amigos tocarem Midnight Rambler (já ouviu falar dele) por quase quinze minutos. Poderia ter sido por apenas seis. Mas por quê não tocar por quinze minutos? E brincar de dominar um estádio de futebol lotado.

Não havia uma pessoa naquele estádio que não estivesse nas palmas das mãos de Mick Jagger.

Então Mick fez o que faz de melhor e cantou Miss You. “Sometimes I wanna play the bass like Darryl!” Carlos ria, conhecia até os improvisos. Keith largou a guitarra no meio da música. Deu vontade de fumar um cigarro trocando uma ideia com alguém da equipe. Achava graça de algo. Tirou a camisa, estava com calor. Então Darryl tocou aquele baixo como Mick gostaria de saber fazer. Keith ficou sério. Prestou atenção como se não visse Darryl fazendo isso há décadas. Como se há 50 anos não visse Charlie Watts preparar a cama para uma linha de baixo deitar. Colocou a camisa, pegou sua guitarra e voltou a brincar de tocar com Ronnie.
Que noite a de Carlos. Lembrou-se daquela tarde chuvosa em que Mick foi gravar Performance. Sentiu, então, o amor a um beijo de distância. Passeou pelos mercados de escravos de New Orleans, certificou-se de que Poncio Pilatos não faria nada fora do combinado. Coitada da Anastasia, sempre gritando em vão!! Sentiu os corpos federem. Lembrou-se da bruxa barbada que o havia criado.

Mas agora estava tudo bem. Estava tudo “allright”!

Now, in fact it´s a gas…

O show ia terminar, mas antes deu uma vontade de tomar uma soda! O sabor? Ah, você sabe.

Por mais irônico que possa parecer, ao final Carlos estava muito mais que satisfeito.

Ainda bem que a bateria do celular havia terminado. Ainda bem que havia deixado a moto em casa.

Era hora de voltar para casa caminhando.

Sentindo a bota molhada da chuva.

Andando contra o fluxo, percebendo o rosto de cada um após o show.

Pegando mais um pouco de chuva.
Sentindo mais um pouco de vida.

Afinal, ain´t it good to be alive?